Por Paulo Kliass | Economista
Um dos maiores problemas do casamento contraído entre uma tecnocracia governamental conservadora e determinados pensadores da ortodoxia neoliberal são os estragos sociais e políticos que eles costumam causar aos povos e nações pelo mundo afora.
Os caras se isolam da realidade concreta, se esquecem da dinâmica social e resolvem “brincar de país”, como se estivessem se divertindo com os amigos à frente de um jogo de tabuleiro. Mas todos sabemos que as consequências tendem a ser bastante graves e desastrosas.
A profunda crise que o Brasil está atravessando ao longo dos últimos dias tem exatamente essa característica. Com a consolidação do “golpeachment” de Dilma pelo Congresso Nacional ocorrido dois anos atrás, as forças vinculadas ao financismo internacional e às elites locais sentiram que estava aberta a oportunidade de iniciar uma temporada de caça ao Estado. Como se tratava de um governo ilegítimo, que não havia sido eleito para a tarefa do desmonte, a estratégia passava pela necessidade de se ancorar no endeusamento dos tecnocratas que colocariam – agora, sim! – a ordem na casa.
O “timing” da política seria tranquilamente resolvido pela inequívoca competência da duplinha dinâmica dos banqueiros Meirelles & Goldfajn na condução da política econômica. O austericídio iniciado por Joaquim Levy em 2015, ainda a pedido de Dilma Roussef, seria complementado rapidamente. Com o sucesso de ajuste macroeconômico, a economia voltaria crescer e Temer poderia comandar o processo sucessório sem maiores dificuldades, inclusive podendo lançar a própria candidatura para uma reeleiçãozinha básica. Só que não! Faltou combinar com os russos, como diria o saudoso Mané Garrincha.
Parente: do apagão da eletricidade ao apagão dos combustíveis.
No contexto da aliança com o tucanato para consolidar o mandato usurpado de forma ilegítima, Temer indicou Pedro Parente para presidir a maior empresa brasileira, a Petrobrás. Seria cômico, se não fosse trágico, que o comando da maior empresa estatal das Américas fosse entregue a quem ficou conhecido por patrocinar as trapalhadas do apagão da energia elétrica no governo FHC. Os resultados não tardariam muito a surgir, dessa vez no horizonte do setor de óleo e gás.
O escolhido havia colecionado uma vasta experiência no interior dos grandes conglomerados industriais e financeiros privados, depois que o PSDB ficou alijado do governo federal em 2002. Assim, ele veio com a encomenda de atender aos interesses do financismo em primeiro lugar. E recuperou o fio da meada da famosa abertura do capital da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova Iorque em 2000. Em cerimônia que contou com a presença midiática até de Pelé, naquele momento a estatal brasileira converteu-se na primeira e única empresa estatal petrolífera do mundo a ser cotada naquele mercado tão conhecido por seu alto grau de especulação. Uma aventura irresponsável, com consequências para o futuro da mesma.
Dentre os diversos aspectos da política de desmonte da Petrobrás implementada por Parente, destacam-se a privatização de setores lucrativos do conglomerado, a entrega da exploração das reservas do Pré Sal para as multinacionais petrolíferas e a liquidação da política de conteúdo local. Assim, aquele que aceitou o convite para presidir o Conselho do gigante grupo da alimentação BRF – simultaneamente ao cargo máximo na Petrobrás – passou a orientar a estratégia de nossa estatal segundo a lógica de uma empresa privada.
Aprendiz de liberal ou quinta-coluna?
Atuando como um verdadeiro quinta-colunista no interior do Estado brasileiro, Parente tem contribuído de forma decisiva para aprofundar a liquidação da empresa criada por Getúlio Vargas ainda em 1954. A orientação do comando da empresa foi no sentido de reproduzir no interior da mesma o modelo do neocolonialismo que o Brasil assume em sua política de relações comerciais. O esquema é semelhante ao praticado pela Vale, que optou por exportar minério de ferro e importar produtos industrializados de maior valor agregado produzidos com essa matéria prima, a exemplo de trilhos e demais derivados de aço.
A solução genial e eficiente do aprendiz de liberal foi obrigar a Petrobrás a aumentar a sua exportação de petróleo “in natura” e aumentar a importação de produtos de maior valor agregado – os derivados de petróleo, como gasolina e diesel. Para tanto, promoveu uma impressionante redução no uso da capacidade das refinarias do grupo, que estão trabalhando a menos de 70% de seu potencial de transformação do óleo bruto. Uma loucura que só se explica pela submissão explícita aos interesses das grandes petroleiras, interessadas em vender produtos ao nosso mercado interno.
Não contente com tais descalabros, Parente resolveu dar tratos à bola e decidiu que não haveria mais nenhum tipo de regulação nos mecanismos de estabelecimento dos preços dos produtos derivados de petróleo. Que maravilha! Agora tudo funcionaria na base do equilíbrio das forças de oferta e demanda, como mandam os manuais de macroeconomia de orientação neoclássica. E mais: a Petrobrás teria os preços de seus produtos definidos diariamente, a partir das oscilações verificadas no mercado internacional de “commodities”. Uma loucura!
Com isso, o Brasil passa a ficar completa e imediatamente dependente dos humores das reuniões da OPEP, quando governantes de países como Arábia Saudita, Irã e Iraque, por exemplo, podem decidir por aumentos nos preços no mercado futuro de seu principal produto exportador. Ou ainda dos destemperos de figuras como o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cujas decisões afetam de forma imediata os mecanismos que atuam sobre a formação da nossa taxa de câmbio.
Petrobrás é estatal e diesel não é batatinha.
Os resultados ao longo dos últimos dois anos forma trágicos. Esse modelo super moderno da gestão tucana promovia enorme instabilidade nos diversos setores que atuam na cadeia do petróleo e também para o conjunto da nossa economia. Afinal, nosso modelo de sociedade é bastante dependente dessa fonte de energia. Além da falta de previsibilidade, o sistema terminou por provocar elevações expressivas nos preços dos derivados que não guardavam nenhuma relação com a estrutura de custos dos mesmos. Nos 30 dias que antecederam o início da paralisação dos caminhoneiros, por exemplo, o preço da gasolina havia subido 20%, ao passo que o governo se vangloriava de uma inflação inferior a 3%.
Quem se der ao trabalho de consultar a tabela de preços praticada pela Petrobrás perceberá que o valor mais recente relativo aos 13 kg de gás de cozinha é R$ 22. No entanto, mesmo antes da crise atual, os preços praticados pelos revendedores nos postos de distribuição raramente eram inferiores a R$ 70. Ora, tal diferença não pode ser explicada apenas por tributos e custos de transporte. Essa verdadeira espoliação ao consumidor só pode ocorrer por complacência da própria Petrobrás e por falta total de fiscalização e controle por parte da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
O aprofundamento mais recente da crise de abastecimento e as sucessivas tentativas de acordo com os caminhoneiros só trouxeram luz ao enorme equívoco em que se converteu a política de preços concebida por Pedro Parente. Os membros do núcleo do Palácio do Planalto evitam assumir publicamente que essa opção do “experimento liberal” praticado pelo tucano revelou-se um inequívoco desastre. Na prática, porém, todos perceberam que essa política foi rifada e percebeu-se que não se pode tratar de forma tão leviana e irresponsável o preço de um bem tão estratégico como o petróleo. Ao confundir a dinâmica de formação de preços do mercado da batatinha, Parente sabia muito bem que o ”mercado” dos chamados bens públicos é muito mais complexo.
Modelito de Parente foi abandonado.
Essa é a razão pela qual a maior parte dos países do mundo promove processos de regulação desse tipo de mercadoria ou serviço. É o caso da energia, das telecomunicações, dos transportes, do saneamento, entre tantos outros. Afinal, não se pode falar de “livre funcionamento das forças de oferta e demanda” em situações onde há poucas empresas oferecendo os bens e cujo preço impacta de forma imediata e direta uma gama ampla de setores da economia.
Parente sabe que perdeu a disputa. Seu modelito destrambelhado de estagiário de liberal deu com os burros n’água. A Petrobrás não pode ser gerida como apenas mais uma grande empresa privada do ramo petroleiro. E a sociedade brasileira percebeu que o conto da carochinha do livre mercado não se aplica a um bem como o petróleo e seus derivados. Agora resta saber como Temer vai encaminhar algum arremedo de solução para a crise. Com a certeza caiu o véu do encantamento que alguns setores ainda mantinham com esse modelo liberalóide. Um verdadeiro engodo que se pretendeu impor goela abaixo de um setor que é diferenciado em sua própria estrutura de funcionamento.
O problema é que permanece a obstinação do governo em manter sua inflexibilidade em outra área da política econômica, ou seja, o equilíbrio fiscal a qualquer custo. Assim, acaba prevalecendo a falsa ideia de que o imbroglio todo dos preços do diesel, gasolina e gás de cozinha reside na carga tributária elevada. O risco de tal interpretação pode ser identificado na pauta de alguns movimentos, que reivindicam a retirada da incidência de tributos na cadeia de produção e comercialização desses bens. Ao desonerar a cadeia do petróleo como medida desesperada para solucionar a crise, o governo acaba reduzindo as receitas em momento de crise fiscal, com o agravante de perda de tributos para o financiamento das contas da seguridade social.
A Petrobrás tem condições de praticar preços internos mais baixos que os atuais. Sua estrutura de custos permite oferecer à população os derivados em condições diversas daquelas oferecidas pelo movimento de alta dos preços do petróleo no mercado internacional. Basta retomar a capacidade de produção em suas refinarias e reduzir as importações desnecessárias. O fato concreto é que a realidade gritou mais alto e o modelo de Parente foi derrotado. O governo tem sinalizado a cada instante que acabou a fase de brincadeira com coisa séria. Agora, tudo indica que ele deverá pedir para sair ou será gentilmente convidado a se retirar.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal. (Artigo publicado originalmente no site Carta Maior)