(Folhapress) – Era a primeira semana de novembro de 2022 quando o general da reserva Mário Fernandes decidiu romper os protocolos militares e enviou uma carta ao então comandante do Exército, general Freire Gomes.
O texto foi enviado via WhatsApp para o chefe da Força e repassado a diversos generais que compunham a cúpula do Exército no fim do governo de Jair Bolsonaro (PL).
Três deles relataram à reportagem que receberam do próprio Mário os dez parágrafos em que o militar pressionava por um golpe de Estado para impedir a posse de Lula (PT) e manter Bolsonaro no poder.
Mário e Bolsonaro integram a lista de 37 indiciados pela Polícia Federal sob suspeita de atuar na trama golpista. O relatório final das investigações foi enviado à PGR (Procuradoria-Geral da República), a quem cabe agora decidir se arquiva o caso, pede mais investigações ou denuncia os suspeitos à Justiça.
O general está em prisão preventiva desde o dia 19. A defesa do militar, feita pelo advogado Raul Livino, diz que só se manifestará após se encontrar com Mario no presídio, na próxima semana, no Rio de Janeiro.
Carta
Mario redigiu a carta às vésperas de o Ministério da Defesa divulgar um relatório da fiscalização feita no sistema eletrônico de votação. O bolsonarismo estava inflamado por uma live em que o argentino Fernando Cerimedo dizia, com informações falsas, ter encontrado fraudes nas urnas.
“COMANDANTE, eu gostaria, inicialmente, de reforçar ao Sr que mantenho minhas esperanças no Relatório da Defesa, instrumento este que, ao menos, deverá manter acesa a chama que atualmente estimula o clamor de nossa Sociedade”, diz Mário no início da carta.
O general da reserva diz que o “nosso povo” não concordava com a “manobra jurídica que anulou a condenação do Sr LULA” e que o elegeu “por meio de um Sistema Eletrônico vulnerável, não transparente e totalmente fraudável”.
Ele demonstrava preocupação com o esvaziamento dos acampamentos golpistas em frente aos quarteis do Exército.
“COMANDANTE, os nossos pais viveram momentos tão tenebrosos como o que vivemos hoje, e como no passado, as nossas Instituições devem compreender que a vontade popular é a base da Democracia e que um apelo social tão significativo não pode simplesmente ser taxado como um Ato Antidemocrático, sendo desconsiderado e censurado.”
Mario prossegue dizendo que as Forças Armadas são de Estado e só poderiam intervir com “apelo social e amparo legal que justifique tal ato”. Ele ainda diz que seria necessário contar com um “Evento Disparador, como no passado”.
“Uma ruptura institucional já ocorreu há muito tempo entre os Poderes. Precisamos tomar as rédeas da situação, COMANDANTE! O respaldo popular está aí e se prosseguirmos na atual passividade, corremos o risco de perder tanto o apoio como a histórica confiança de nossa Sociedade!”
O general afirma que no governo Bolsonaro havia diversos generais e os chamados patriotas dedicados ao futuro digno do Brasil. Na gestão de Lula que começaria em janeiro de 2023, essas pessoas não sentariam à mesa para tomar decisões.
“É agora ou nunca mais, COMANDANTE, temos que agir! E não existe motivação maior do que a proteção e o futuro desta Grande Nação e de seus filhos — Os nossos filhos!”, escreve Mário no final da carta.
Freire Gomes tinha relação de amizade com Mário. O primeiro chefiou o Comando de Operações Especiais enquanto o segundo atuava na mesma base dos chamados “kids pretos”, a unidade de operações especiais em Goiânia.
O comandante, porém, se irritou com a carta. Ele disse a interlocutores que pensava até em prender Mário, como revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo e confirmado pela Folha de S.Paulo. Freire Gomes acabou recuando da punição ao militar por considerar que a reação de Bolsonaro seria inesperada.
O Ministério da Defesa entregou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em 9 de novembro de 2022 o relatório sobre sua fiscalização no processo eleitoral. O documento, porém, começou a circular horas antes entre integrantes do Alto Comando do Exército.
O general Valério Stumpf, então chefe do Estado-Maior do Exército, foi um dos que receberam o relatório. Ele acompanhava de perto os trabalhos de fiscalização das urnas, já que integrantes da Força participavam do esforço.
Foi dele a ideia de abrir espaço numa reunião do Alto Comando do Exército, no segundo semestre de 2022, para o coronel Marcelo Nogueira apresentar o plano de trabalho sobre a fiscalização das urnas aos generais quatro estrelas. Nogueira era quem comandava o grupo da Defesa.
Segundo relatos feitos à reportagem, o general Stumpf se comprometeu com autoridades em Brasília que o relatório da Defesa seria técnico, ou seja, não criaria suspeitas caso não as encontrasse.
Os militares envolvidos na fiscalização, de fato, não encontraram nem sequer indícios de fraudes. Eles, porém, se apegaram a minúcias do processo eleitoral para dizer que não confirmavam fraudes nem atestavam a lisura do processo.
Stumpf, ao receber o documento, foi conversar com o coronel Marcelo Nogueira. Aconselhou o militar a não assinar o relatório porque descumpria a promessa de não levantar suspeitas onde não havia.
Nogueira decidiu assinar o relatório junto com o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio. Ele argumentou ao chefe do Estado-Maior que o documento era técnico e não alegava fraudes.
Marcelo Nogueira de Sousa não foi promovido a general. Está na reserva desde setembro de 2023.
A PF diz na conclusão da investigação da trama golpista que o relatório do Ministério da Defesa, associado à nota divulgada pela pasta em que não atestava a regularidade do processo eleitoral, foi a forma encontrada pelo governo para permitir a “continuidade dos atos planejados pela organização criminosa”.
“A prevalência do entendimento de que o Ministério da Defesa não encontrou qualquer fraude ou vulnerabilidade no sistema eletrônico de votação, desconstituiria a narrativa de fraude eleitoral, desmobilizando as manifestações e, consequentemente, dissipando a falsa — justa causa — para a execução do Golpe de Estado e Abolição do Estado Democrático de Direito”, diz.