O cultivo de vegetais para consumo e venda é uma atividade essencial para o que se chama de soberania alimentar – a saber, o conceito designa o direito dos povos de decidir as suas políticas alimentares, exercendo a autonomia na escolha do que, para quem e como produzir e, assim garantir a segurança nutricional de suas populações, preservando o ambiente e as culturas alimentares. É de uma forma de proteger esse acesso a alimentação saudável e variada e aos benefícios que ecossistemas equilibrados oferecem que trata o artigo científico Quintais Agroecológicos, Soberania Alimentar e Produção de Serviços Ecossistêmicos no Sul da Bahia, Brasil, assinado por Felipe Otávio Campelo e Silva (UFSB), Jomar Gomes Jardim (UFSB) e Paulo Rogério Lopes (UFPR) e publicado na Revista de Gestão Social e Ambiental.
Os quintais produtivos analisados na pesquisa realizada por Felipe, que é doutorando no Programa de Pós-graduação em Biossistemas (UFSB), se caracterizam pela extensão e variedade de espécies cultivadas e derivam de experiências de produção de subsistência. Conforme o pesquisador Felipe, “os quintais produtivos têm longa tradição nos países tropicais, mas é uma prática conhecida e utilizada em todo o mundo. É uma das formas mais antigas de produção realizada pelos seres humanos, podendo ser considerada como uma das origens da agricultura. Sua importância é reconhecida desde os ‘Jardins do tipo Schereber’ da Alemanha, oriundos de uma política pública de reforma agrária e estímulo à produção de alimentos na metade do século XVIII, os ‘Jardins do socorro’ durante a Grande Depressão de 1929 no EUA, e os ‘Jardins da Vitória’, que visavam produzir rapidamente alimentos e em quantidade suficiente para sustentar populações inteiras durante a Segunda Grande Guerra.”
Casas sem quintaisNo artigo, os autores apresentam dados coletados junto às comunidades que cultivam 18 lotes de terrenos de assentamento da reforma agrária, no Assentamento Bela Manhã, em Teixeira de Freitas, e no Assentamento Jacy Rocha, em Prado, no extremo sul da Bahia. Esses lotes estão inclusos nos Projetos de Assentamentos Agroecológicos no Extremo Sul da Bahia, criados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) através da Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto. As áreas eram usadas para pastagem e criação de gado, antes da criação dos assentamentos, e não havia nenhuma árvore. Conforme levantamento dos pesquisadores, os lotes tiveram implantação dos quintais produtivos entre 2016 e 2017.
Para levantar as informações, os pesquisadores realizaram entrevistas, questionários semiestruturados, caminhadas transversais, coletaram solos para análise química e plantas para identificação, articulando métodos e técnicas de pesquisa quantitativas e qualitativas. O perfil socioeconômico das famílias, a caracterização dos quintais produtivos e os serviços ecossistêmicos identificados estão descritos no artigo, e apontam para a variedade de espécies cultivadas, gerando renda monetária e não-monetária (com o consumo de parte da produção para subsistência), bem como a percepção e valorização, pelas famílias entrevistadas, de muitos benefícios com os serviços ecossistêmicos obtidos com os quintais.
A produção de alimentos de origem vegetal e animal permite que as famílias obtenham nutrição em boa parte produzida localmente, além de renda. Dos alimentos consumidos nos 18 lotes, 47% são de produtos oriundos dos quintais, 11% de outras partes dos lotes e 42% são comprados, de acordo com o artigo. A produção nos espaços analisados inclui carnes de aves e suínos, ovos, frutas e vegetais de lavoura. As espécies frutíferas mais presentes nos lotes estudados são a banana da prata, o cacau, o coco anão, a pitaia, o mamão, a laranja-da-terra e o abacate.
Embelezamento quintalUm dado destacado pelos pesquisadores é o fato de as famílias destacarem serviços ecossistêmicos de regulação, como diminuição da temperatura, manutenção de água no solo e proteção contra o vento, e de suporte, como melhoria do solo e aumento do número de pássaros, que normalmente passam desapercebidos. Felipe explica que essa percepção está relacionada com a situação dos lotes na época da chegada das famílias e com os efeitos das mudanças climáticas em curso. Segundo ele, as famílias “encontraram terras degradadas, com a presença apenas de pastagens, o que impactou diretamente na qualidade de vida das famílias. Como as ações do projeto foram desenvolvidas em curto espaço de tempo, e o aporte de insumos (mudas, adubos e sementes) foram na quantidade definida tecnicamente, então os seus resultados foram obtidos em um tempo menor e numa intensidade que contribuíram para essa visibilidade”.
O pesquisador Felipe explica que o modelo de quintais produtivos implantados nos assentamentos Bela Manhã e Jacy Rocha combinou os objetivos de geração de soberania alimentar, recuperação da biodiversidade local e a geração de renda. “O tamanho de um hectare contribuiu na criação de estratégias que permitiu a ampliação das frutíferas e implementação de lavouras temporárias e perenes, garantindo o acesso a mercados institucionais e de circuitos curtos. Outro aspecto de diferencial no modelo implementado é a existência de uma assistência técnica e ao modelo organizativo do MST, que estimula a troca de conhecimentos e as formações para a necessidade de recuperação ambiental. Por fim o estímulo ao plantio de mudas nativas e adubação verde e as formações sobre técnicas de manejo (podas e roçagens) foi um elemento fundamental para o manejo agroecológico predominante nos quintais”, detalha.
Perguntados sobre que melhorias podem ser aplicadas aos quintais produtivos estudados no artigo, os pesquisadores apontam para estratégias de aprimoramento dos ciclos energéticos, a exemplo da implementação de sistemas de mandalas, sistemas fotovoltaicos, biodigestores para produção de insumos e gás, além de estruturas para processamento de frutas.